quinta-feira, 12 de novembro de 2009

1 Dona Lalinha

Helane Carine Aragão

Dona Lalinha era uma senhora de meia idade. A idade exata nem ela mesma sabe dizer. Já mentiu tanto sobre a data de nascimento, que não consegue lembrar exatamente qual é a verdadeira. Atualmente, vive só com o marido, Sr. Menescau, poucos anos mais velho. Seu Memê foi o homem dedicado e trabalhador com quem teve três filhos, que se casaram e que se mudaram para fora do país. Esse é a razão das idas e vindas conntantes aos Estados Unidos, Austrália e Inglaterra, que faz Dona Lalinha suportar o “quase” vazio do apartamento de luxo que mantém em uma grande capital. A senhora tranquila de cabelos loiros “naturais” e olhos verdes arrumou uma maneira, mais ou menos eficaz, para canalizar metade da energia que possui, equivalente a de de uma mulher de 30 anos. Seu Memê não dá trabalho algum. Faz tudo sozinho: anda, come, bebe água, abre a porta para as visitas quando o porteiro eletrônico está quebrado e o elevador em manutenção e até vê televisão, quando não cai no sono mal humorado. Um humor tolerável, segundo Dona Lalinha.
Abigail é amiga de Dona Lalinha desde a infância. Hoje, se não fosse pelo apetite sexual por homens mais novos de Lalinha e pelo apoio moral que uma promove a outra, seria possível arriscar uma relação homossexual entre as duas. Não seria anormal, não para elas. Noites no teatro, viagens, jantares em restaurantes no meio da semana e as sessões de cinema amenizam, para Dona Lalinha, o tédio da rotina diária, quando não está deslumbrada no interior de algum Walmart. Para Abigail, a programação substitui a falta que sente do marido, falecido há alguns anos, e a companhia dos filhos, que nunca quis ter. Não se arrepende. Para ela, a presença de Lalinha devolveu à vida uma nova adolescência, um tanto quanto esquecida com o passar dos anos. Um dia no cinema, juntas, um acontecimento deu uma nova perspectiva para Dona Lalinha.
Era fim de tarde de uma quarta-feira e elas estavam assistindo High School Musical - 1, 2, 3, não fazia diferença. Dona Lalinha sempre quis ser cantora em um musical da Broadway – e um aperto de Abigail em seu braço a tirou do transe emitido pela tela. Dona Lalinha diz quase sentir cheiros e sabores presentes no filme, quando se concentra em uma história. Um tumulto se formou e pessoas, "ou adolescentes cheios de hormônios para ser mais exata", segundo Dona Lalinha, saíram em disparada pelas escadas, quando e alguém gritou:
-“Tarado! Tarado!”
Instantaneamente, Abigail puxou a amiga para correr para a saída, mas não sentiu ela se mover. Preocupada com a paralisia momentânea da companheira, Abigail tentou focar o rosto em Lalinha no meio do escuro e da confusão, sem entender o brilho nos olhos daquela senhora de um metro e meio de altura que tentava desesperadamente encontrar alguém no meio da confusão. Com um sorriso de satisfação estampado no rosto, Dona Lalinha nunca explicou para Abigail o que sentira naquela ocasião, mas, em sua cabeça, um novo de plano de ataque, para resolver com aqueles tremores e aquecimento que sentia repetidamente em seu corpo de tempos em tempos, era arquitetado silenciosamente.
Foi em um domingo de novembro que Dona Lalinha acordou entediada e resolveu ir ao cinema. Sozinha desta vez. Acompanhou por meses, em jornais, rádio, televisão, twitter e facebook, o episódio do tarado que nunca encontraram. Talvez ela tivesse sorte desta vez. Viu no Telecine, na noite anterior, que um filme baseado em uma história de Charles Dickens estreara no cinema perto de casa. Um shopping de classe média alta, com adolescentes moderninhos deveria ser um bom lugar para encontrar o tarado de novo. Vestiu seu vestido de seda preto, passou maquiagem e um perfume sedutor da Victoria's Secret, comprado no Free Shop na volta da última viagem aos Estados Unidos, poucos dias atrás. Arrumou o almoço de Seu Memê e deixou o prato feito no microondas, mais por remorso que obrigação. Conferiu a carteira Dolce & Gabanna na bolsa Gucci e chamou um taxi.
Assim que chegou ao shopping, descobriu uma sessão começando em poucos minutos. Entrou na fila preferencial para comprar o ingresso e pensou: “Bom sinal!”. Ao passar pela entrada da sala, percebeu que o filme era uma exibição em 3D seria necessário usar óculos especiais, nada sexy, sobrepostos sobre os óculos de leitura cor-de-rosa. Notou que não tinha só mães e crianças pelas poltronas. Jovens casais, ou grupos de amigos, já estavam acomodados. “Isso deve ser um bom sinal”, avaliou a situação enquanto procurava um lugar perto de um dos corredores laterais, para se fazer vista quando seu “agressor” estivesse, inconscientemente, a procura dela.
Quando a projeção iniciou, Dona Lalinha perdeu o foco do seu objetivo ali e, encantada, tentava, mais de uma vez, espanar os pequenos flocos de neve que caiam sobre os personagens da história, assim como na ponta do próprio nariz. Quase no final do filme, se viu com a mão esticada tentado acariciar o rosto enrugado do velho que protagonizava o romance. Quando deu por si, os créditos já estavam no final e ela continuava maravilhada com a proximidade da tela a sua frente.
Mas Dona Lalinha estava determinada, tanto que ignorou a chamada perdida em seu Iphone rosa chiclete. Abigail não a entenderia e ela precisava encontrar o tarado. Saiu da sala e comprou uma nova sessão. Desta vez, na companhia de Gerard Butler, Jamie Fox e alguma violência e sangue derramado, ela conseguiria realizar a fantasia inocente. Entrou no cinema e trocou de poltrona três vezes ao notar que os possíveis candidatos estavam acompanhados - dois por jovens mulheres e o terceiro por um coroa muito sarado que Dona Lalinha considerou um desperdício para ambos, inclusive ela.
Resolveu sentar sozinha nas poltronas laterais destinadas a duas ou três pessoas. Distribuía olhares sedutores a todo jovem musculoso que passava ao seu lado a procura de um lugar. As luzes apagaram muito cedo e desgostosa resolveu apreciar o filme, que nem fazia muito o gênero que mais gostava. Dona Lalinha observou que as pessoas reagiam à história de forma incomum. Achavam “tri-legal” o sarcasmo do personagem interpretado por Butler, sobretudo quando ele esquartejava, ironizava ou explodia a cabeça de alguém com um invento de cientista maluco. “Pouco se importavam que o balzaquiano, escocês, ex-alcoólatra e ex-advogado na vida real, estivesse matando inocentes para mostrar o quão frágil é o poder judiciário dos Estados Unidos”, um absurdo, como declarou um dia desses. Os presentes pareciam justificar que Clyde - personagem de Butler, o qual Dona Lalinha já tinha assistido a outros dois filmes estrelados por ele, em menos de 30 dias - tinha um motivo plausível para a matança: a esposa e filha haviam sido brutalmente assassinadas enquanto a casa era assaltada. E o pobre Clyde assistiu a tudo sem poder fazer nada. “Onde o mundo vai para com esse comportamento juvenil?”, apesar de que, ela concordava que os gritos histéricos das jovens tinha uma certa razão, sobretudo numa cena em que ele aparece despido. Entregue às próprias análises e conclusões da trama, Dona Lalinha racionalizava as informações quando uma voz, vinda da poltrona detrás sussurrou em seu ouvido:
-Oi!
Era uma voz suave, máscula e muito sensual. Nervosa, ela respondeu em seu melhor tom:
-Oi!
-Não posso falar alto.
-Eu sei. Ela disse meio envergonhada.
-Só vou sair daqui quando o filme terminar. Quer se encontrar comigo depois disso?
Dona Lalinha tremia tanto que era quase impossível acreditar. Ignorou o comportamento inadmissível da platéia próxima - um garoto emitia gritos de excitação e proferia palavrões aprovando o último assassinato cometido por Clyde – e virou para trás, as bochechas coradas, o sorriso largo e os olhos brilhando de desejo e respondeu que adoraria. Foi só então que percebeu a surpresa, o assombro e a cara de paspalho do homem que segurava um celular em uma das mãos.
Envergonhada, Dona Lalinha voltou para sua posição inicial e se afundou na poltrona querendo diminuir de tamanho e sumir dali sem que alguém percebesse. Não prestou atenção no resto do filme, mas notou o descontentamento da sala lotada com o desfecho que fora reservado para o personagem principal. Depois que todo mundo saiu, ela pegou a sua bolsa e, murcha, caminhou para a saída. Chamou um taxi na entrada do shopping. Passou ao motorista o destino com uma voz que não passava de um chiado. Se arrastou pelo hall do edifício, evitando o próprio rosto refletido no espelho do elevador vazio.
Ao entrar em casa, viu Seu Memê cochilando no sofá da sala. Ela foi até o quarto, tirou toda a roupa e vestiu o roupão de algodão rosa bebê que estava no cabideiro. Voltou para sala e sentou-se ao lado do marido. Pegou o controle remoto para mudar o canal de golfe, pouco comovente, quando sentiu uma mão sobre o joelho direito. Seu Memê abriu os olhos e entre murmúrios incompreensíveis que a tiravam completamente do sério tentou sorrir para a esposa. Com os ombros pesados de culpa e remorso, ela retribuiu o sorriso do esposo e se aninhou nos braços confortavelmente conhecidos. Sentiu o cheio da colônia que o acompanhava há tantos anos e memórias de um tempo quando eram mais jovens - e viris - inundou os pensamentos de Dona Lalinha.
Ela levantou a cabeça e olhou para Seu Memê, com o mesmo olhar que distribuiu naquela tarde. A diferença estava nos estranhos corpos mais firmes que não faziam “mêmêmês” para se comunicar. “Mas por que não?”, ela pensou.
-Amanhã vou marcar uma consulta para você, Memê. Vamos ao cardiologista!
O marido não entendeu o repente da esposa, mas não cabia a ele questionar com murmúrios. Ele a preferia por perto e qualquer tipo de cuidado por parte dela seria sempre bem vindo. Um talk show começou em outro canal e ambos ficaram ali, calados, até o programa terminar. Mais tarde, na suíte do casal, enquanto Dona Lalinha tirava a maquiagem e passava os infinitos cremes pelo corpo, ela mantinha os mesmos pensamentos: “E por que não? Se o Dr. Valadares garantir que não é perigoso para Memê qualquer tipo de atividade sexual, ainda há a esperança da maca do consultório ser utilizada. Sempre achei Valadares um pão e agora que ele ficou viúvo... Por que não? Memê poderia ficar esperando na sala espera e...” um “mememê” alto a tirou do devaneio. Ela voltou para o quarto, afofou o travesseiro e olhou para o marido que sorria feliz como uma criança.
- Durma bem, querido. Amanhã veremos Dr. Valadares.
Ela acomodou-se debaixo das cobertas, desligou o abajur e se preparou para mais uma noite de sonhos inquietos. “Amanhã, Valadares. Amanhã!” e então, pegou no sono.
sono.

Um comentário:

Guilherme Santos disse...

Muito bom o Texto.

Posso jurar que Dona Lalinha mora em Porto Alegre, e acho até que já vi ela, vez ou outra, no tempo em que eu era mais "cinéfilo", pelo menos a descrição está perfeita. Pobre seu Mêmê. Aguardo a continuação da história.

Beju.