sexta-feira, 20 de novembro de 2009

2 Clarinha

Helane Carine Aragão

Clarinha, moça morena. Descendente de mãe índia com pai mulato, saiu cabo-verde, de olhos verdes, mente verde... Toda verde. Quando começou a virar fruta madura, os homens do interior onde fora criada, começaram a cobiçar o sapoti virgem. O pai, dono do armazém, único do lugarejo onde cresceu, não gostou muito da história. Mas comerciante, achou melhor escolher um pretendente e garantir o futuro da filha. Tonico, 15 anos mais velho que Clarinha, cheirava a fumo queimado e suor azedo. E era rico. Muito rico. Possuía fazendas e cabeças de gado para dar de sova. Nunca casara. Também, cheirando daquele jeito, não havia quem o quisesse como genro, nem mesmo o pai mais interesseiro. Clarinha não teve sorte. Aos 14, já estava prometida com horário para namorar no portão até às 20h30, sem supervisão de ninguém. Categoricamente às 18h, todos os dias, ela já estava pronta. Todos os dias sentava no sofá da sala com a janta revirando no estômago para aguardar, pacientemente, o seu martírio noturno.

Tentou se rebelar uma vez. Bateu o pé com força no chão, cruzou os braços no peito, inchou o beicinho, mas não deu muito resultado. Só não apanhou do pai para não ficar avariada e correr o risco de perder o valor. E o pretendente. Enquanto esperava, maquinava fugas mirabolantes ou mergulhava nas páginas românticas de Alencar, seu amante secreto. Se imaginava uma das femininas personagens do romancista, divagava em sonhos intermináveis com finais felizes e ansiava pelo cavaleiro alto, forte, lindo, com todos os dentes na boca e cheiroso, muito cheiroso, que iria chegar debaixo da janela do sobrado simples que dividia com os pais e três irmãos mais velhos, gritaria seu nome e, em um rompante, ela se atiraria pela janela, caindo calculadamente formosa no alazão dourado que a levaria para bem longe dali.

Queria, de verdade, ir para a capital. Estudar e ser doutora de leis. Iria processar todos os pais donos de armazéns que obrigavam filhas de quatorze anos a passar por aquele tipo de tortura psicológica e olfativa. Aos sábados não havia visitas de Tonico, mas a faxina comia no centro da residência dos Pereira, sob rígida supervisão da matriarca da família, que não nasceu general, Clarinha não entendia o porquê. Mas era no sábado o seu momento feliz. Só não era mais perfeito que os domingos de missa, evento mais esperado da semana, pelo menos até o padre enxotar todo mundo da capela depois da pregação, para que ele pudesse se encharcar de vinho e espiar da torre do sino, o bordel - vizinho de muro da igreja - que iniciava função às 17h e pouquinho, bem quando a missa terminava. Estratégico, lógico. As esposas e filhas iam tomar chá e comer bolo na padaria, enquanto os homens de família iam fumar charutos e jogar bilhar na grande mesa verde de feltro verde do bar que ficava no fundo da grande casa vermelha perto da praça. O Bordel de Lalinha. Hoje Dona Lalinha vive na capital e dizem que muito bem, obrigada. Conheceu um viajante, Menescau, que passava pela cidade e, por descuido, entrou na casa vermelha pensando ser uma hospedaria. Chegou pedindo um quarto para descansar da viagem exaustiva e saiu de lá três dias depois, com Lalinha de braço dado e uma grande festa de despedida na porta do casarão, onde as moças que cuidavam da limpeza e de servir as mesas do bar, muito prendadas e com corpinhos bem traçados, acenavam alegremente - e com muita pouca roupa - o casal que deixava a cidade no pau-de-arara enfeitado de fitas azuis e brancas.

Dizem que Lalinha virou “Dona” e não anda mais de pau-de-arara, nem de condução. Dizem que ela só passeia agora pelo estrangeiro. Menescau sofreu um derrame, mas as más línguas dizem que, tirando os mêmêmês que ele grunhe, o bom moço se vira bem sozinho. Nem precisaram contratar uma enfermeira para tratar dos banhos e da higiene pessoal do marido de Lalinha. Eles nem têm uma auxiliar doméstica, porque Seu Memê dá conta dos afazares que uma casa demanda e assim, Dona Lalinha pode aproveitar a vida e a juventude como merece.
Clarinha de vez em quando se desconectava da falação e entrava na história que ouvia a mãe e as amigas contarem, domingo sim, domingo não, enquanto pediam o mesmo chá aguado e o bolo solado na padaria. Clarinha suspirava fundo e desviava sorrateiramente os olhos para o horizonte empoeirado da cidade sem graça, quando deixava escapar certa irritação ao escutar as críticas sobre Lalinha. Na verdade, ela invejava a moça que foi embora com o rapaz que ela queria, para ter a vida que queria, no lugar que queria. Santo Deus, misericordioso! Que sua mãe não sonhasse com esses pensamentos jocosos. Mas, então, o fim de semana agradável, diante de todas as circunstâncias, acabava com a chegada de Tonico, que misturava leite de rosas ao odor já estragado e as acompanhava até a casa. Todo domingo era a mesma coisa. Passou um ano inteiro até que marcaram a data do casório, ou sepultamento, como preferia pensar Clarinha.
O tempo agora era curto e o dinheiro, roubado toda dia, pouco a pouco, da caixa registradora do armazém, não era grande coisa, mas já pagava a passagem para capital e ainda sobrava algum para dormir em algum lugar por um tempo até arrumar um trabalho que a ajudasse a viver e financiar os estudos. Ela seria Doutora de leis. Iria processar todos os pais donos de armazéns que obrigavam filhas de quatorze anos a passar por aquele tipo de tortura psicológica e olfativa e que escondiam o dinheiro em algum lugar que não era a caixa registradora! - E foi assim, em um domingo depois da missa, que Clarinha vestiu três camisas, uma sobre a outra, duas saias e o sapato mais alinhado, de festa, que só possuia graças a sovinice do pai que comprara para garota um tamanho dois números maior, para não perder enquanto crescia. Bem acalhar na ocasião, pois permitiu calçar três meias grossas.

Suou igual a mala velha durante a pregação de blábláblá do padre bêbado safado, mas se saiu bem, já que alegara se vestir daquele jeito para se proteger da friagem, pois não se sentia muito bem de saúde naquela tarde. Discretamente, enquanto sua mãe e amigas encostavam-se no balcão da mesma padaria, para fazer os mesmos pedidos, Clarinha saiu de fininho e foi para a estação rodoviária do outro lado da rua. Um exagero chamar aquilo de estação rodoviária, como pôde Clarinha constatar dias depois. Aquela casinha de pau a pique, no meio da praça, com o vidro quebrado, não poderia nunca ser considerada uma estação rodoviária.
Já sabia os horários da condução, pois prestou bastante atenção na conversa de dois moços um dia na padaria. Um era motorista do ônibus que ia para a capital. Eles conversavam sobre o tempo de trajeto da viagem até o destino final. A lotação sempre saia quase vazia, dali a poucos minutos e a levariam daquela vida desumana que tanto odiava. Pediu a passagem de cabeça baixa e olhos enterrados no queixo, sabendo que havia sido reconhecida, mas que quando dessem por falta dela, ou melhor, quando Tonico fedido a rosas azedas chegasse para buscá-la na padaria, ela já estaria longe dali. Torcia com as mãos fechadas em prece, na última poltrona do ônibus, que Tonico não resolvesse atacar de cavaleiro dos pesadelos em seu inseparável Pé-de-Pano e fosse atrás dela. Quando o veículo deu partida, o coração de Clarinha acelerou e o filme inteiro - do tipo Festival de 1 minuto, que ela conheceria mais velha - de uma infância mais tranquila, passou por seus olhos como um adeus. A estrada em sua frente a levaria em busca de todos os sonhos que vivia através das páginas dos livros amassadas que lia com tanta lamúria, ou pelos pensamentos que permitia a sua criatividade gerar.

Talvez arrumasse uma casa para trabalhar de empregada doméstica. Os sábados de faxina sob o comando da general serviriam, enfim, para alguma coisa. A noite caiu e o cansaço emocional tomou conta do corpo fatigado da menina. Entre pesadelos, que faziam o ônibus parar e um odor fedorento que a atingia do lugar por onde ela olhava pela janela, Clarinha apagou. Conseguiu vislumbrar alguns sonhos em cor-de-rosa desbotado antes de dormir. "Ser uma doutora de leis", foi o último pensamento que ela teve antes de adormecer. “Uma doutora de leis!” e Clarinha partiu em busca de um nova vida.

Um comentário:

Guilherme Santos disse...

Será que a Clarinha tá indo pra mesma Capital da Dona Lalinha?

Ela bem que podia trabalhar na limpeza do cinema de algum shopping, talvez encontrar um certo "tarado", e finalmente descobrir-se uma filha abandonada de Dona Lalinha.

Mexericos à parte, tá muito boa a história.
Aguardaremos a próxima.

bj