quinta-feira, 8 de abril de 2010

4 Cidade grande

Helane Carine Aragão

Clarinha olhava para tudo admirada no instante em que a ficha caiu. “Para onde ir agora”? No bolso, poucos reais e um papel amarrotado com o nome de uma mulher escrito: Laércia Carvalho. Nenhum endereço, nenhum telefone para entrar em contato. Ainda na primeira parada na estrada, entrou no banheiro de um posto de gasolina e tirou as roupas sobrepostas do corpo suado e empoeirado.

Na loja de conveniências, se é que se pode chamar aquele amontoado de tranqueiras de loja, comprou um pacote de biscoitos e um litro de água mineral, pensando em economizar com a alimentação dos próximos dias. Cruzava os dedos, desde então, para que na nova parada o banheiro estivesse munido de sabão líquido e, assim, aproveitar um banho improvisado, em uma ducha, quando houvesse, ou na pia. Nem sempre dava sorte. A viagem durou três dias e meio e ninguém foi a procura de Clarinha.

Depois da primeira noite, sentiu falta de uma escova e pasta para os dentes, o que reduziu as reservas financeiras. Mas, apesar do contexto que se encontrava, ali estava ela, em busca de novos rumos para a sua vida e por conta própria. Enquanto andava com a trouxa de roupas na mão observou a magnitude daquela rodoviária. Era muita gente, muito baralho, muito movimento concentrado em um só lugar. Os olhos se moviam em todas as direções, como se anotasse tudo mentalmente. Ao passar a vista por uma pilastra esquecida no meio do burburinho urbano, notou aquele homem. “Lindo!”, pensou ela. “E como ele é alto. E que sorriso incrível.”
O choque foi maior quando percebeu que aquela escultura viva sorria para ela. Em transe, sorriu de volta. Nessa altura, ele já estava em pé na frente de Clarinha, falando palavras que ela não conseguia compreender.

-O quê? – Ela perguntou quando se recuperou do choque.
- Perguntei se você está perdida. Se alguém vem te buscar.

“Que voz doce, parece um anjo cantando. Que dentes lindos! E estão todos aí. E como são branquinhos. Como é alto, e lindo, e perfeito!” Enquanto fantasiava e admirava aquele homem materializado em sua frente, Clarinha perdia os sentidos e via tudo rodar. Sem entender o que acontecia com o seu corpo, teve um momento de lucidez e entendeu que tudo não passara de uma alucinação. Aos poucos sentiu perder o controle das pernas que fraquejaram e que ela cairia em um sono profundo. “Estaria eu sonhando?”

No instante do último lampejo de consciência viu tudo apagar à sua frente. Marc, que olhava a moça, atônito, reagiu instantaneamente ao perceber que ela tombava e a segurou entre os braços. Um policial se aproximou quando percebeu a cena e questionou o rapaz sobre o que estava acontecendo ali.

-É minha prima, senhor. Acabou de chegar de viagem e passou mal. Vou levá-la ao posto de saúde e depois para casa. Não há de ser nada grave.

Enquanto carregava Clarinha no colo, não pode deixar de sentir um súbito arrepio na espinha e o estômago embrulhar. Não entendia porque mentiu e tomou para si a responsabilidade por aquela garota desconhecida O que ele faria agora? Se a levasse para o posto de saúde, como anunciou para o policial, iriam fazer perguntas que ele não saberia responder. Poderia se complicar. Calculou a distância que estacionara o carro e decidiu levá-la para lá. Pelo menos até que ela se restabelecesse.

Apertou o abraço ao redor de Clarinha, acolhendo-a mais perto do peito, quando percebeu os olhares curiosos que os acompanhava durante a passagem Pediu ajuda para um senhor que estava perto do Renault Clio 2004 branco. Agora entendia a utilidade de um carro quatro portas. Se estivesse sozinho, a manobra para abrir a porta do carona e deitar a menina no banco traseiro seria muito mais simples com portas adicionais. Agradeceu a ajuda do senhor e se adiantou em explicar que a prima acabara de chegar de viagem do interior e passara mal. O senhor sorriu compreensivo e foi embora.

Parado em pé, ali, vendo-a completamente indefesa em seu carro, só aguçou o instinto de proteção que sentiu quando pôs os olhos nela minutos antes. Percebeu a fadiga estampada no rosto de anjo moreno e as profundas olheiras que circundavam os pequenos olhos. A respiração parecia normal, mas o aspecto era de desnutrição. Decidiu que levaria ela para casa e quando ela acordasse decidiria o que fazer. “E se ela não acordasse? E se algo mais grave acontecesse no caminho?” Um pavor inexplicável subiu até a garganta provocando uma agonia no peito que nunca havia sentido antes. Não tiraria os olhos dela até que ela estivesse bem.

Fechou a porta e tomou lugar na posição de motorista. Deu partida no carro, lembrando que precisaria sair para comprar algumas coisas para quando ela acordasse. Estacionou o carro em frente ao edifício e carregou a garota, ainda desacordada para o quarto. “Preciso trocar a roupa de cama!”. Deixou-a descansando no sofá enquanto dava uma geral rápida no quarto. Depois a colocou na cama e ficou ali, paralisado sem entender bem porque fazia aquilo e que tipo de sensações eram aquelas que ele estava sentindo. Acreditando que ela dormiria por algumas horas, passou os olhos no apartamento e pegou a trouxa que ela segurava. Encontrou algumas peças de roupa, um pacote de biscoitos, só com farelos, e um documento de identidade. “Maria Clara Couto de Andrade”.

Colocou a identidade onde encontrara, pegou a chave do carro e trancou a porta quando saiu. Leite, café e pão entraram na lista mental que preparou. Não pretendia demorar. Com sorte, ela ainda estaria dormindo quando retornasse.

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