sábado, 20 de março de 2010

3 Marc

Helane Carine Aragão

Marc estava sentado entediado no engradado de verduras esquecido no canto da rodoviária. Gente indo e vindo e o barulho dos ônibus que partiam ou estacionavam, desembarcando mais passageiros, não foram suficientes para tirar o rapaz do estágio letárgico que se encontrava. Submerso nos próprios pensamentos, o moreno de 1,87m fustigava a unha do dedão da mão direita como se aquilo pudesse dar as respostas que procurava. “Que diacho de vida infeliz!”, pensava.

Largadoo ali, tentava lembrar quem era. De onde veio. Quem eram os seus pais. Nunca os conheceu. Desde que se entende por gente, tem as memórias ligadas ao orfanato, gerenciado por freiras, onde cresceu e passou maior parte da infância. Tinha tudo para ser um garoto bom, se não tivesse percebido que a beleza exótica poderia atrair-lhe o que bem entendesse. Aprendeu a fugir da “prisão de pingüins adestrados” quando completou 12 anos. A malandragem se desenvolveu ao passo que se tornou um grande ator. Aprendeu a chorar tão bem, que podia ser contratado para compor enterro de indigente. Pena que ninguém contratava para esse tipo de enterro.

Com 14 já tinha consciência do que o porte físico poderia render entre as mulheres e com 16 começou a tirar a roupa em cima de um palco de quinta, para coroas e homossexuais. Conquistou um público fiel e foi em uma das apresentações nomeio da semana, com pouquíssima roupa, que um espanhol branquelo, barrigudo e com pouco cabelo fez a proposta. O europeu, com quarenta e poucos anos, se dizia empresário e o convidou para trabalhar em uma das casas noturnas que possuía na Espanha e Portugal. Disse a Marc, na época Marcelo Vinícius, que ele iria começar em Lisboa, onde o público estava mais acostumado com o estilo brasileiro e logo então “evoluísse” seria transferido para a Espanha. O time madrileno era o melhor esquadrão na atividade que o espanhol, José Reyes, conseguiu montar. Além de cariocas, paranaenses e gaúchos, José tinha uma queda especial pelos homens achocolatados da colônia portuguesa.

José fez de Marcelo, Marcel e o transformou no seu brinquedinho mais valioso. O alimentou e contratou um personal trainner para desenvolver e definir a estrutura muscular do garoto. O fez se exercitar por horas, quando não estava trabalhando no clube à noite. Proveu-lhe de roupas despojadas e muito caras, além da sunga box preta brilhante e gravata borboleta que compunham o uniforme de trabalho. O corpo musculoso e delineado passeava entre as mesas, deixando os fregueses animados a fazer um pedido atrás do outro, o que movimentava bem a caixa registradora no fim do expediente. As gorjetas eram generosas, o que proporcionou a formação de uma gorda poupança levando Marcel querer alçar vôos mais altos. Foi em um fim de semana de folga que ele, em Londres e de passagem por um clube badalado, subiu no palco e fez um show sem compromisso. A proprietária do estabelecimento não o deixou mais voltar para José e então nasceu Marc.

Sentado ali, contado os poucos reais que guardava no bolso, ele se lembrava da vida desgastante, mas de bolsos cheios, que conheceu um dia enquanto esteve do outro lado do oceano. Um dia se cansou da vida vazia, das mulheres que o olhavam como um artigo de luxo na vitrine e resolver voltar para o Brasil. O dinheiro que conseguiu juntar, lhe garantiu um apartamento de dois quartos em um bairro mediano e um carro, que pelo tempo de uso, já apresentava sinais de um novo. Se manteve bem por cinco anos, mas as economias já davam sinais de escassez. Andou por bairros de classe média alta, a procura de alguém que pudesse aliar simpatia e garantia de um futuro rentável. Chegou a fazer alguns programas, mas não era muito lucrativo e ele já estava cansado dessa vida.

Arrumou um bico de segurança em um restaurante francês, onde trabalhava quatro noites por semana e lhe rendia o suficiente para viver, sem luxo e extravagâncias. Nunca acreditou no amor. Para ele, paixão é assunto para tolos que tem tempo para perder com ilusões sentimentais. Sempre foi prático e precisou se virar. Sozinho. Quando se sentia amargurado, desse jeito, o destino rotineiramente o levava para a rodoviária, como se quisesse apontar para ele um caminho. Um rumo. E ali ficava, por horas, absorto à realidade sem saber para onde ir e o que fazer.

Foi quando ele a viu. Assustada, os olhos do verde mais bonito que ele já tinha admirado, olhava para tudo em uma mistura de maravilha e assombro. Segurava uma trouxa de roupa amarrotada e não sabia para que lado ir. “Mais uma caipira que vem tentar a vida na cidade grande”, pensou ele. Um sentimento de agonia começou a se brotar em seu corpo enquanto acompanhava de longe aquela criatura. Linda. Desnorteada. Indefesa.

Um certo ar de menina sonhadora o atraiu e despertou um instinto de proteção que nunca havia experimentado antes. Sem pensar muito no que estava fazendo, se levantou e foi em direção a ela. Não entendeu muito bem o que estava fazendo, nem o que diria, só não podia deixá-la sumir no meio da multidão que começava a engoli-la.

Um comentário:

Guilherme Santos disse...

Pra variar, ótimo texto.

E pra variar também, deixa curioso quem lê, esse truque é ótimo, mas desesperador pra quem lê....heheh

Então, trate de continuar a história.

Não sei se o José Reyes foi intencional, mas ele tem um jogador espanhol dado à exageros, com esse nome.

espero pela continuação.

bj