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Flertar é um comportamento natural entre seres humanos que expelem hormônios sexuais a fim de demonstrar interesse, discreto, lisonjeiro. O processo dá início quando dois olhos se encontram provocando uma variedade de reações. Um dos flertantes pode desviar o olhar. Nesse momento a visão pode variar de direção. Ir para cima, para baixo, para um lado ou para o outro, ou fazer todos ao mesmo tempo em um completo colapso nervoso de insegurança. Em casos mais graves, ela pode fulminar o acompanhante e carregada de culpa perguntar para onde ele estava olhando. Se você alcançou este estágio é melhor fazer cara de zangada. A hora é excelente para uma cena estratégica e não ser flagrada no ato libidinoso que estava executando.
***
A lembrança mais antiga que tenho da minha infância é de um passeio de escola que fizemos a um sítio, fora da cidade. Eu vivia o meu primeiro amor. Tinha nove anos e nós flertávamos à beça! Nesse passeio, em especial, os meninos começavam a descobrir os corpos das meninas. Gustavo brincava com todas e entrava no jogo inocente dos amigos de jogar água com as mãos nas meninas, que davam gritinhos histéricos e corriam pela piscina, com água batendo nos joelhos. Ninguém jogava água em mim, por mais que eu quisesse entrar na brincadeira. Ele censurava os colegas com os olhos, sempre com os olhos, e então entendi que eu era propriedade particular.
Nenhuma palavra foi dita. Nenhuma proposta apresentada, nenhum acordo firmado. Nada aconteceu respeitando as normas dos contratos sociais que se estabelecem naturalmente. Na hora de ir embora, a turma começou a brincar de quem namora com quem dentro do ônibus e a feinha da turma sempre acabava como namorada de alguém que declinava aos berros o cargo. Enquanto os garotos iam e vinham pelos corredores do transporte, hora sentando ao lado da menina mais popular da turma, hora cantando algo semelhante a “Tá namorando! Tá namorando!”, Gustavo se mantinha na poltrona em frente a minha, virado para mim, rindo dos colegas e segurando a minha mão. Não sei como nossas mãos se entrelaçaram, mas era a melhor sensação do mundo. Às vezes nossos olhares se cruzavam e riam, sem mexer os lábios. Meu braço erguido já dava sinais de dormência, mas não me atrevi a trocar de posição. Até que algum infeliz percebeu o nosso namoro silencioso e nos deflagrou para o resto da turma. Foi um alvoroço e os amigos dele acabaram se metendo entre nós, na maior farra.
Nossas mãos se soltaram e nunca mais nos tocamos. Nunca mais nossos olhos se cruzaram. Os amigos tentaram consertar o erro semanas depois, antes de sairmos em férias no fim do ano letivo. Ao sair da sala, os amigos de Gustavo, Fábio e Marcos, seguraram minha mochila e com autoridade declararam: “Só devolvemos se você beijar o Gustavo”. Ameacei correr, mas um deles me segurou. Comecei a chorar. Gustavo, estático, olhava tudo em silêncio. Eu já me debatia nervosa, tentando me libertar quando ele ordenou: “Soltem-na! Se ela não quer, eu também não quero!”. Não me lembro de qualquer outra ocasião que tenha corrido tanto em minha vida. O motor do ônibus escolar, que me levava para casa todos os dias, só aguardava a minha chegada. Chorei, descontroladamente, até chegar ao meu quarto.
Estudamos todo o primário juntos, mas ele só falava comigo na semana dos dias dos namorados. Era tradição as turmas prepararem correios para servir de pretexto para os apaixonados trocar bilhetinhos açucarados. Gustavo sempre me mandava um, sempre perto do dia dos namorados. Mas não nos falávamos. Nem um boa tarde quando chegávamos na escola. Nenhum até logo quando a aula acabava. Nós nos falávamos pelos olhos, apesar de que, não ficava muito claro o que a gente conversava telepaticamente. Então, Gustavo parou de me olhar, diretamente, e os olhares passaram a ser sorrateiros, pelo canto dos olhos. Ele começou a namorar. Não demonstrei nenhuma reação ao saber da novidade. Mas, surpreendentemente, o último bilhete me foi entregue no dia dos namorados. Estávamos na quinta série, com 11 anos, e Gustavo namorava com a Carolina. Ela não recebeu bilhete de Gustavo, apesar de ter enviando um montão deles. Este mesmo ano, eu fui trocada de escola e o meu primeiro amor ficou para trás com todas as sensações que demanda uma primeira paixão aprendida precocemente. A partir daí, o flerte mudou de forma.
Os olhares, à medida que o tempo passava, eram mais agressivos. Os meninos aprenderam a ser mais diretos e falar de uma vez o que queriam. Dançar, ir ao cinema, namorar. Então veio o primeiro carnaval, sem os meus pais ao lado, e o flerte mudou de direção. Já tinha 15. As bocas falam por si e quase não se via quem estava colado em você. Talvez pela distância quase inexistente entre os corpos. As pessoas se apaixonavam pela ponta do nariz. “-Como foi o seu carnaval? –Ah, foi maravilhoso. Me apaixonei por um narizinho super pequenininho. Fofo!” O flerte passou a ser acompanhado por um sorriso capcioso, ou direcionado a outras partes do corpo, geralmente, onde os meus olhos não alcançam. Passei a adolescência sem saber de Gustavo. Fiz cursinho, vestibular e entrei na faculdade. Conheci um monte de rapazes. Todos muito mais falantes que Gustavo. Um dia eu estava andando pelos corredores da faculdade de economia e lá estava ele, parado, em minha frente. Eu já era bastante falante e desenvolvi uma desinibição fora do comum, comparado aos tempos de escola. Flertava muito melhor também. Conversava até com pedra enterrada. Aprendi a segurar o olhar ao ver algo que me interessava, sem desviá-los. Só para fazer charme. Às vezes olhava para baixo, desviando o olhar da presa e dava um sorrisinho maroto, para depois voltar a flertar, mas isso fazia parte do jogo da conquista que aprendi com o tempo e com as novas amigas. Ao ver Gustavo, ali, parado em minha frente, as palavras sumiram e voltei 10 anos no tempo para ter de novo nove anos.
Os olhos se fixaram no cadarço do meu all star e passei por ele muda. Tinha tanta coisa para dizer, tantos palavrões para expelir a respeito do último episódio da escola. Aprendi a dizer tudo o que penso e sinto, ou quase. Senti que ele me seguia com os olhos e sorria, mas também não me dirigiu a palavra. Parando para pensar, eu não sei como é a voz dele até hoje! Entrei na sala de aula muda e branca como um fantasma. Minhas amigas ficaram preocupadas. Muda, quieta, quase morta, era muito anormal para a minha nova personalidade. Então contei que tinha acontecido no corredor. Contei dos flertes, das mãos dadas e da tentativa desesperada dele de me beijar – ou dos amigos, que ele me beijasse. Agora não tenho como saber. Terminei o dia introspectiva, com apelos de “Volte ao normal pelo amor de Deus! Você está muito chata hoje.”
Cheguei em casa e corri para o meu quarto. No fundo do meu guarda-roupa, saquei uma caixa de palha que secretamente escondia papel de bombom, diários, medalhas e outras recordações. Protegido em uma caixinha em forma de coração estava ele: o último bilhete de Gustavo. Abri com calma e escrito a mão, dentro de um coração desenhado de vermelho, eu li: “Vou lembrar de você para sempre!”. Talvez isso explique porque não lembro da cara do rapaz que beijei semana passada...
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A lembrança mais antiga que tenho da minha infância é de um passeio de escola que fizemos a um sítio, fora da cidade. Eu vivia o meu primeiro amor. Tinha nove anos e nós flertávamos à beça! Nesse passeio, em especial, os meninos começavam a descobrir os corpos das meninas. Gustavo brincava com todas e entrava no jogo inocente dos amigos de jogar água com as mãos nas meninas, que davam gritinhos histéricos e corriam pela piscina, com água batendo nos joelhos. Ninguém jogava água em mim, por mais que eu quisesse entrar na brincadeira. Ele censurava os colegas com os olhos, sempre com os olhos, e então entendi que eu era propriedade particular.
Nenhuma palavra foi dita. Nenhuma proposta apresentada, nenhum acordo firmado. Nada aconteceu respeitando as normas dos contratos sociais que se estabelecem naturalmente. Na hora de ir embora, a turma começou a brincar de quem namora com quem dentro do ônibus e a feinha da turma sempre acabava como namorada de alguém que declinava aos berros o cargo. Enquanto os garotos iam e vinham pelos corredores do transporte, hora sentando ao lado da menina mais popular da turma, hora cantando algo semelhante a “Tá namorando! Tá namorando!”, Gustavo se mantinha na poltrona em frente a minha, virado para mim, rindo dos colegas e segurando a minha mão. Não sei como nossas mãos se entrelaçaram, mas era a melhor sensação do mundo. Às vezes nossos olhares se cruzavam e riam, sem mexer os lábios. Meu braço erguido já dava sinais de dormência, mas não me atrevi a trocar de posição. Até que algum infeliz percebeu o nosso namoro silencioso e nos deflagrou para o resto da turma. Foi um alvoroço e os amigos dele acabaram se metendo entre nós, na maior farra.
Nossas mãos se soltaram e nunca mais nos tocamos. Nunca mais nossos olhos se cruzaram. Os amigos tentaram consertar o erro semanas depois, antes de sairmos em férias no fim do ano letivo. Ao sair da sala, os amigos de Gustavo, Fábio e Marcos, seguraram minha mochila e com autoridade declararam: “Só devolvemos se você beijar o Gustavo”. Ameacei correr, mas um deles me segurou. Comecei a chorar. Gustavo, estático, olhava tudo em silêncio. Eu já me debatia nervosa, tentando me libertar quando ele ordenou: “Soltem-na! Se ela não quer, eu também não quero!”. Não me lembro de qualquer outra ocasião que tenha corrido tanto em minha vida. O motor do ônibus escolar, que me levava para casa todos os dias, só aguardava a minha chegada. Chorei, descontroladamente, até chegar ao meu quarto.
Estudamos todo o primário juntos, mas ele só falava comigo na semana dos dias dos namorados. Era tradição as turmas prepararem correios para servir de pretexto para os apaixonados trocar bilhetinhos açucarados. Gustavo sempre me mandava um, sempre perto do dia dos namorados. Mas não nos falávamos. Nem um boa tarde quando chegávamos na escola. Nenhum até logo quando a aula acabava. Nós nos falávamos pelos olhos, apesar de que, não ficava muito claro o que a gente conversava telepaticamente. Então, Gustavo parou de me olhar, diretamente, e os olhares passaram a ser sorrateiros, pelo canto dos olhos. Ele começou a namorar. Não demonstrei nenhuma reação ao saber da novidade. Mas, surpreendentemente, o último bilhete me foi entregue no dia dos namorados. Estávamos na quinta série, com 11 anos, e Gustavo namorava com a Carolina. Ela não recebeu bilhete de Gustavo, apesar de ter enviando um montão deles. Este mesmo ano, eu fui trocada de escola e o meu primeiro amor ficou para trás com todas as sensações que demanda uma primeira paixão aprendida precocemente. A partir daí, o flerte mudou de forma.
Os olhares, à medida que o tempo passava, eram mais agressivos. Os meninos aprenderam a ser mais diretos e falar de uma vez o que queriam. Dançar, ir ao cinema, namorar. Então veio o primeiro carnaval, sem os meus pais ao lado, e o flerte mudou de direção. Já tinha 15. As bocas falam por si e quase não se via quem estava colado em você. Talvez pela distância quase inexistente entre os corpos. As pessoas se apaixonavam pela ponta do nariz. “-Como foi o seu carnaval? –Ah, foi maravilhoso. Me apaixonei por um narizinho super pequenininho. Fofo!” O flerte passou a ser acompanhado por um sorriso capcioso, ou direcionado a outras partes do corpo, geralmente, onde os meus olhos não alcançam. Passei a adolescência sem saber de Gustavo. Fiz cursinho, vestibular e entrei na faculdade. Conheci um monte de rapazes. Todos muito mais falantes que Gustavo. Um dia eu estava andando pelos corredores da faculdade de economia e lá estava ele, parado, em minha frente. Eu já era bastante falante e desenvolvi uma desinibição fora do comum, comparado aos tempos de escola. Flertava muito melhor também. Conversava até com pedra enterrada. Aprendi a segurar o olhar ao ver algo que me interessava, sem desviá-los. Só para fazer charme. Às vezes olhava para baixo, desviando o olhar da presa e dava um sorrisinho maroto, para depois voltar a flertar, mas isso fazia parte do jogo da conquista que aprendi com o tempo e com as novas amigas. Ao ver Gustavo, ali, parado em minha frente, as palavras sumiram e voltei 10 anos no tempo para ter de novo nove anos.
Os olhos se fixaram no cadarço do meu all star e passei por ele muda. Tinha tanta coisa para dizer, tantos palavrões para expelir a respeito do último episódio da escola. Aprendi a dizer tudo o que penso e sinto, ou quase. Senti que ele me seguia com os olhos e sorria, mas também não me dirigiu a palavra. Parando para pensar, eu não sei como é a voz dele até hoje! Entrei na sala de aula muda e branca como um fantasma. Minhas amigas ficaram preocupadas. Muda, quieta, quase morta, era muito anormal para a minha nova personalidade. Então contei que tinha acontecido no corredor. Contei dos flertes, das mãos dadas e da tentativa desesperada dele de me beijar – ou dos amigos, que ele me beijasse. Agora não tenho como saber. Terminei o dia introspectiva, com apelos de “Volte ao normal pelo amor de Deus! Você está muito chata hoje.”
Cheguei em casa e corri para o meu quarto. No fundo do meu guarda-roupa, saquei uma caixa de palha que secretamente escondia papel de bombom, diários, medalhas e outras recordações. Protegido em uma caixinha em forma de coração estava ele: o último bilhete de Gustavo. Abri com calma e escrito a mão, dentro de um coração desenhado de vermelho, eu li: “Vou lembrar de você para sempre!”. Talvez isso explique porque não lembro da cara do rapaz que beijei semana passada...
Um comentário:
Amiga,
história real?
Fiquei mentalmente criando cada cena e imaginando cada situação...
É tão bom relembrar amores, reviver sensações e sentir saudade do que se poderia ter vivido.
O texto está muitoooo bom!
Adoro você!
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