Uma mulher que nem o diabo gosta.
Helane Carine Aragão
hcabomfim@gmail.com
Pomba Jirah era descendente de árabes. Árabes mulçumanos comedores de gente árabe mulçumana. Uma loucura! Nasceu meio a uma família desestruturada. Dona Pomba até tentou seguir os padrões formais de estrutura familiar. Casou virgem, pura e casta. Pelo menos foi o que Pombinha contou.
O marido, colecionador além de esposas - e porque não? - de ficantes, mantinha o estranho hábito de ficar com as ex-esposa – o cara era moderno! Está certo que há quem defenda a poligamia na era contemporânea, mas o Sr. Jirah readaptou todos os padrões de comportamento normal. Ou anormal? Enfim, remodelou. O pai de Pombinha já estava no terceiro casamento. Dona Pomba foi a segunda, mas mesmo depois dos safanões recebidos pelo marido, consegue, hoje, manter uma grande amizade com o mesmo.
A situação mais curiosa foi no 19º aniversário de Pombinha. A festa foi em uma boite onde os dois, Sr. Jirah e Dona Pomba, esperavam os convidados juvenis da filhota se deslocarem até a pista de dança, para trocar beijos, lambuzados e apaixonados. Presenciei alguns. Uma loucura! Só então passei a entender, mais ou menos, os conflitos de caráter de Pombinha.
Pombinha era uma figura roliça, estatura mediana, truncadinha. Se não tivesse descendência árabe qualquer um poderia jurar que era uma das filhas de Cira, baiana de acarajé famosa em Salvador. Mas Pombinha não morava em Salvador. Pombinha tinha estirpe nobre, sangue europeu. Sua origem não se sabe bem ao certo. Há quem diga que nasceu entre os flocos de neve dos Alpes suíços. Outra vertente pode jurar que já viu a árvore genealógica dos Jirah e afirma que eles descendem de uma nobre família de agricultores do sul da França. Isso pouco importa. Pombinha é tudo, menos brasileira. Se ela me escuta conjecturando sobre suas origens afrodescendentes, cheia de malevolência, é capaz de me dar uma patada.
Sim. Pombinha treinou durante muitos anos a arte da cavalice. É uma amazona nata. Mas uma criatura doce. Muito doce. Os anos e as questões de estrutura familiar moldaram a personalidade da doce criatura. Pombinha era mal compreendida. Talvez fosse essa a explicação para que todos gostassem tanto dela, apesar dela achar que não era correspondida. Talvez explicasse a grande quantidade de amigos verdadeiros que eram aglomerados, todos os dias, na vida da doce menina. Ela só queria os amigos novos, que não a conheciam o suficiente para ter certeza de que gostavam dela pelo que ela era de fato.
Pombinha não entendia porque as pessoas que entravam em sua vida, depois se afastavam. Ela não achava justo que depois de conquistá-la, os falsos e maquiavélicos amigos a abandonassem. Ela que era uma amiga dedicada, uma ouvinte impassível, um poço de compreensão. Cansada de sofrer com falsas amizades, Pombinha criou um mundo só dela. Um mundo doce, tão doce, que ela se sentiria querida sempre. Em todos os momentos. Há quem diga que o mundo que Pombinha criou era tão doce, mas tão doce, que foi dele que ela contraiu diabetes. Pelo menos ela disse que tinha diabetes.
Em seu mundo, Pombinha recebia todos os dias galanteios dos homens mais influentes do seu meio. Eram inúmeros convites para jantar, dos melhores partidos da cidade. Seus pais a amavam. Amavam-na mais que os outros 125 irmãos que tinha. Ela era perfeita. Era sempre convidada para pousar nas capas das revistas mais glamorosas de moda. Seu corpo fora esculpido para estampar e referenciar a silhueta da mulher perfeita. Seu cabelo era lindo, de brilho perolado que dançava ao ritmo leve da brisa mais suave do dia. O sorriso e a voz meiga encantavam a qualquer um que tivesse um cargo superior a diretor executivo. Um primor.
Pombinha era a competência em pessoa. Não precisava trabalhar, pois seus pais - e ela própria - detinham uma fortuna muito valiosa e muitos negócios espalhados pela cidade. Trabalhava porque gostava do trabalho voluntário. Exercia a função de assessora. Assessora de qualquer pessoa que recebesse acima de doze mil reais. Era dedicada. Aparecia no trabalho apenas quando lhe dava ganas, para fazer apenas o que lhe dava na telha. Não nasceu para receber ordens. Gostava de mandar, mesmo que só mandasse no mundo doce que criara. O amargo mundo doce de fantasia que transformaram Pombinha em um ser sem noção.
Um dia, resolveu tirar férias. Iria se ausentar com aviso prévio. Tudo dentro da lei trabalhista. Não pagou a nenhum dos seus credores, pois achava que dívidas como as dela nem seriam cobradas. Para ela é como se custassem o preço de um cafezinho. Pura cortesia. Viajou. Foi rever os parentes nórdicos na Holanda. Pombinha só esqueceu de dizer que assim como existe o Complexo do alemão e a Rocinha, a Holanda ficava em terras cariocas. Agora entendo a animação ao falar sobre o povo e a comida holandesa. Sempre soube que a feijoada carioca era a melhor do Brasil. Mas seria injusta em não comentar que ganhei presentes das tão empolgantes férias no exterior.
A tulipa da Heineken veio embalada em jornal baiano. Pombinha me relatou que foi um sufoco retirá-la do pub que foi com os amigos, apesar do copo não ter nenhuma pisca de cheiro de cevada. Deu-me também um maiô ultrapassado da Speedo, com uma mancha amarelada que delatava o tempo que permaneceu esquecido no fundo do armário. Mas ela lembrou-se de mim! Ninguém mais recebeu presentinhos estrangeiros. Agradeci, mas depois das mal fadadas linhas nossa amizade ruiu. Pombinha ficou ainda mais malvada do que já era. Acho que a diabetes comeu toda a amarga doçura da menina.
Enfim, Pombinha morreu. O coração parou de desgosto por um mundo que nunca a compreendera. Vestiu sua melhor túnica branca e deu uma chapinha de íons infravermelhos reconstrutora da estrutura capilar, proporcionando um brilho negro intenso dos já falecidos fios perolados. Passou blush, sombra e um gloss de tom rosa claro. Pegou um metrô, pois não andava de ônibus. Tampouco quis privar os irmãos da Blazer turbo 4x4 cor de ouro que deixara para trás, junto com a vida e os amigos ingratos.
Ao chegar à porta do céu, tratou logo de perguntar quanto São Pedro recebia de honorários para medir a intensidade do sorriso que disporia ao amável senhor. Antes do mesmo responder, tratou da sua auto-apresentação e listou todas as celebridades que eram as melhores amigas e amigos em vida. Chorou pitangas do quanto incompreendida era e quis logo saber se a suíte que reservara para ela tinha vista para as nuvens mais fofas, se era no bairro mais nobre e badalado do céu e se os atores globais eram seus vizinhos. Pretendia se candidatar para atuar como assessora de imprensa celestial dos mesmos.
São Pedro aturdido, mas transbordando paciência, disse a Pombinha que ela precisava se redimir naquele momento pelas atrocidades, cavalices e devaneios cometidos em vida, para poder digi-evoluir. Aquele pokémon maldito não iria causar balburdias em um ambiente de paz. Pombinha se sentiu ofendida e percebeu de imediato que as injustiças contra a sua pessoa também seriam cometidas naquele ambiente branco sem graça, sem movimento, sem gente famosa à sua espera.
Empinou o nariz de porco, presente de um amigo do pai que estava a passeio no Sudão, e rebolou a protuberância traseira excessiva em formato de geléia e foi “rebolante” de volta ao metrô que a esperava vazio. Ao Entrar, como num filme de extraterrestres, o veículo travou as portas e começou a se movimentar. De pronto ele parou. A porta se abriu novamente e um bafo quente beijou o rosto de Pombinha dando-lhe as boas vindas. Pombinha sentiu um grande prazer e achou que finalmente havia encontrado um lugar ideal para ser feliz. Olhando para frente, deu um solavanco no porteiro livrando a passagem para que a nova visitante pudesse desfilar imponente em seu novo lar. Tocava uma música tecno alta e muita gente bebia, dançava e produzia orgias grupais em qualquer lugar. Pombinha sorriu satisfeita. Uma voz ressonou por todo ambiente e todos calaram atônitos. Aos berros a voz clamou:
-Aqui não, minha filha. Só há lugar para um no mundo! Não queira tomar o lugar do seu criador.
E pombinha foi atirada do inferno, como um argentino que sem querer cai no meio da torcida brasileira em uma final de copa do mundo entre Brasil e Argentina no Maracanã.
Hoje, Pombinha vaga entre dois mundos, em um que ela criou para si. Mas para surpresa minha, assim como para Pombinha, o mundo já estava habitado. As pessoas que lá vivem acreditam que Lula é o melhor presidente do Brasil, que a inflação não vai subir nunca mais e que a violência vai acabar com a construção de mais e moderno presídios. Talvez este mundo faça algum sentido para os novos amigos de Pombinha. Talvez um mundo de mentiras e fantasias torne o mundo mais aprazível para viver. Talvez eu seja cética demais. Talvez eu faça mau juízo do diabo...
sábado, 30 de agosto de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário