Coletivo de Deus
Helane Carine Aragão
Salvador, perto do carnaval, passa por uma transformação interessante. A cidade, pelo menos no que se pode observar da Ondina à Barra, vira um canteiro de obras. Tapumes, madeirites, ferragens, capacetes e estruturas que acomodarão turistas, imprensa, órgãos da prefeitura, polícia e o que mais puder ser colocado nas ruas, surgem e fazem do trânsito, e vielas de acesso, um caos.
Em dias normais, gosto de pegar a linha que me leva de volta para casa pelo trajeto mais longo. Depois de uma breve passada pela orla, e pela encantadora vista do Farol da Barra no fim de tarde, mergulho nas páginas de algum livro que sempre carrego.
Nesta quinta-feira, em especial, acomodei-me na cadeira atrás do motorista, com vista para o mar e dei continuidade à leitura que tenho feito nas últimas semanas. Fora as freadas, e a buzina que vem de fora da janela, a leitura é constantemente interrompida por ambulantes, que de uma forma ou de outra, tentam ganhar a vida com a venda de: Barras de cereais, balas de gengibre, amendoins, chocolates, canetas perfumadas, kit de costura, cola do tipo superbonder "genérica" – pelo menos foi o que eu contabilizei hoje - e os ditos "ex-drogados recuperados", que entram no ônibus proferindo desculpas "por incomodar o silêncio e a paz da viagem" de quem vos escreve.
Pelo menos três. Três recuperados entraram no Barra-3 em que eu estava hoje. Mas um, em especial, me chamou a atenção. Se bem que é injusto dizer que ele chamou a minha atenção quando na verdade ele a pertubou por completo.
Ele se apresentou como sendo ex-drogado há seis anos – o palestrante anterior a ele, e da mesma instituição, era ex-drogado há apenas cinco e me pergunto se as campanhas de combate às drogas finalmente surtiram efeito – e que era do Paraná, de Londrina. Eu, novamente, me pego analisando a situação: Seremos nós, baianos, exemplos de solidariedade e compromisso social?
Com um vozeirão - mas vozeirão daqueles de candidato no palanque em plena campanha eleitoral, sem microfone – e sem pedir licença, começa a relatar as intervenções cirúrgicas pelas quais havia passado enquanto drogado e no quão benéfico a palavra do Senhor foi para a vida dele.
Ele pediu uma vil contribuição de um real para a Casa que o ajudou a recuperar-se depois que este - ao contrário do colega ex-drogado anterior que batia na mãe, bebia todo dia e espancava a esposa, e ainda sim estava livre, sem nenhum tipo de processo ou julgamento a responder - descobriu que tinha uma missão.
A missão: "Através da venda de canetinhas - de fluido gel - perfumadas, arrecadar contribuições para que a instituição que o ajudou a sair do mundo das drogas pudesse continuar ajudando a outros jovens como ele."
O tratamento é todo realizado através da palavra do Senhor. Que medicina atrasada a nossa! Preocupando-se com processos de desintoxicação e abstinência. Clínica de tratamento é coisa para filhinho de papai mesmo, que não sabe rezar e que não fez primeira comunhão. A cura está no Novo Testamento e ninguém nunca leu. Ou não conseguiu, se a tentativa foi feita em um ônibus coletivo.
Relevei a preleção já que possivelmente na próxima parada ele desceria e eu, novamente, poderia dispor de mais alguns minutos de leitura agradável, ininterrupta e do meu interesse. Ledo engano. Este não iria descer, e muito menos, calaria a boca. Resolveu pregar a palavra do Senhor, frente à pequena – quiçá nenhuma – arrecadação.
Seguiu declamando passagens, salmos, experiências de vida e comparações esdrúxulas do cotidiano em comum de todos ali presentes. Desisti da leitura e o engarrafamento que nos engoliu, hora juntou-se a um trio elétrico presente na lavagem de Itapoan – Delícia de bairro!
Tudo que o Pastor do Coletivo queria...
Platéia, condução de graça até o destino que desejava, exemplos de farra, adoração ao Demo, "idolatração" ao diabo, aos prazeres da carne, bebida, pagode, e "enquanto as igrejas estão mais vazias, a porta do inferno se alarga cada vez mais, para receber o contingente de desgarrados que só aumenta. Contribuir ninguém pode! Mas se for para tomar cerveja ou ir ao Festival de verão..."
É isso que o povo quer. Samba, suor e cerveja. E libertinagem. Eu na verdade só queria que ele calasse a boca e me deixasse seguir sossegada em minha leitura até o meu destino final. Ou que ele falasse baixo, já que estava no pé do meu ouvido. Num surto de loucura – segundo ele eu estava possuída pelo satanás – implorei:
-Querido, não já chega?
-Chega de pregar a palavra do Senhor?
Ele estava estupefato.
-Sim. Eu não quero ouvir a palavra do senhor, eu quero continuar a ler meu livro, que parei por sua causa e da sua gritaria.
Silêncio no ônibus. Respirei aliviada. Mas ele não se conformou e diante da platéia atônita pela minha audácia e ousadia – que não sei se me agradecia ou me odiava – perguntou:
-Alguém mais está incomodado com a Palavra do Senhor? A palavra do Senhor não cansa, salva.
Respondi:
-Se eu quiser ouvir a palavra do Senhor, eu vou a uma Igreja, não pego um ônibus. Assim como respeitei a sua preleção (acho que ele até agora se pergunta o que seria isso...) e a escutei, não quero mais.
Eu ia me exaltar. O silêncio de todos, a espera de um desfecho, era ensurdecedor. Eu, verdade, queria que ele se exaltasse, mas ele, muito cinicamente, já que ninguém o respondeu, disse que iria parar, que aquilo era uma democracia – há quem use esta palavra sem saber o que de fato significa – que eu não precisava me alterar, mas que a Igreja estava em qualquer lugar, até ali mesmo, dentro daquele ônibus. E voltou-se novamente para a platéia.
Queria na verdade enfiar as canetinhas da bolsa preta, surrada, que ele carregava goela abaixo do Pastor, e então, eu era, enfim, a ovelha desgarrada que deu lugar a novas pregações. Respirei fundo e pensei: Estou a dez minutos de casa. Escutei ele perguntar a alguém se o fim de linha estava muito longe. Levantei para descer e ele tomou meu assento. Nem deu tempo de esfriar. Vou rezar um pai nosso e uma Ave Maria antes de dormi. Amanhã começo a ler a Bíblia e fazer palavras cruzadas.
Amanhã, quem sabe, até compro uma caneta.
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