quinta-feira, 26 de novembro de 2009

De dentro da janela

Helane Carine Aragão



Parece-me meio patético ter que fazer em forma de prosa a minha frustração. Mas de que outro modo posso tornar pública a minha incapacidade como cidadã, com os direitos feridos, mesmo dentro da própria casa? O problema entre vizinhos, som alto e desrespeito, é um assunto mais que debatido em meios de comunicação, assembléias de condomínio e tribunais. As pessoas deveriam entender que o gosto particular não é o do coletivo e que os vizinhos não são obrigados a consumir a “cultura” que o cômodo ao lado julga agradável. Essa é apenas a minha pífia e insignificante opinião - porque é isso que eu sou: apenas uma vizinha problemática, chata e mal-amada (com ou sem hífen?), que por ser “infeliz” tem o prazer de estragar a farra daqueles que compartilham o espaço comum e seguro dos condomínios fechados.

Minha odisséia começou por volta das 11h30 da manhã. Acordei às 8h30 sabendo que o domingo, único dia da semana que disponho para atividades em meu domicílio, seria tomado pela formulação de parte do meu trabalho de conclusão de curso. O prazo era apertado, pois deveria ser apresentado na segunda-feira ao meu orientador. Sinto-me patética, outra vez, ao ter que declarar a minha programação semanal para justificar a minha atividade insossa no domingo, mesmo sabendo que ninguém tem nada com isso. Aliás, não tem mesmo. Não vou me delongar com pormenores. Meu fim de semana começa sábado, às 20h, depois que passo duas horas entre o término da atividade que pratico durante a tarde e a espera do ônibus que me leva de volta para casa. Não reclamo. A vida é assim mesmo, pelo menos eu escolhi que a minha fosse: cheia de desafios e tarefas a cumprir.

Fui à cozinha, perto do horário de almoço, reabastecer as energias e continuar a tarefa que comecei logo depois do café da manhã. Aproveitando o momento de pausa, levei o meu prato de comida leve para frente da televisão e, então, fazer duas coisas prazerosas ao mesmo tempo. Tempo que vale ouro no meu caso. Acomodei-me na poltrona, liguei a TV e me senti muito infeliz ao perceber que para escutar o áudio emitido pelo aparelho, eu teria que ficar quase surda. O som do sambinha - de muito bom gosto por sinal, não posso negar – invadia, sem pedir licença, as janelas que me separavam do mundo exterior, cheio de vida. Isso me causou alguma irritação. Ponderei. Cansaço físico e emocional, fome, enclausuramento. Respirei fundo. Não seria justo terminar com o prazer daqueles alheios aos meus problemas. Desisti dos meus planos e resolvi comer embalada ao ritmo do som do meu vizinho. Preferia algo mais tranqüilo - de verdade - que o “devagar miudinho” que a música anunciava. De repente, eu não tinha mais fome. Não queria ouvir samba. Só queria me alimentar assistindo a algo do meu interesse. Não podia porque os meus vizinhos queriam ouvir samba. Levantei controlando os meus ânimos e, de posse do interfone, liguei para a portaria. Roberto atendeu. Pedi, muito gentilmente, que ele me ajudasse enviando alguém para pedir que o som reduzisse o volume. Expliquei a minha necessidade, a minha urgência e ele disse que o faria. Peguei meu prato de volta e tentei voltar a comer esperando que o som reduzisse pelo menos um pouquinho. Dessa forma, eu saberia que a festa continuaria intacta e que meu vizinho guardava por mim um mínimo de respeito. Mesmo sem nem saber quem eu era de fato.

Nada. Voltei a ligar para a portaria e Roberto me disse, dessa vez, que enviou um colega para falar com a família animada. Outrora, eu mesma estaria no meio daquela folia. Rindo, brincando, bebendo uma cervejinha gelada, degustando a carne da churrasqueira improvisada, sem me dar conta do quanto eu já incomodei outras pessoas. Agora eu sei o que estar, por opção, do outro lado da farra. Ao perceber que a segunda ligação para Roberto não surtiu efeito, como eu poderia resolver o meu problema? Fechei portas e janelas para afastar o som da rua e quase derreti de calor. Por que eu tinha que me enjaular dentro da minha casa. Dessa vez, a irritação era latente, piorada com o suor que escorria da minha testa. Peguei o telefone e disquei 190. A atendente Carla, depois de ouvir o meu problema, disse que para reclamar do som alto eu tinha que ligar para a Sucom. Aí, eu respirei fundo. Muito mais fundo. Fui ao núcleo da terra de tão fundo... A Sucom! Carla, muito prestativa, me ofereceu o número de telefone da superintendência - o da portaria (71)2201-6600. Liguei. No segundo toque, uma voz masculina atendeu. Eu expliquei minha necessidade e a voz me informou que o telefone para a minha queixa era outro. Ele me forneceu outro número e fiz uma nova ligação. Todos muito gentis e educados para um domingo de sol escaldante e uma chata que não tinha o que fazer reclamando do outro lado da linha.

Uma mensagem me atendeu no segundo toque, de novo: “No momento todos os atendentes estão ocupados. Aguarde e atenderemos dentro de alguns minutos... Tarararantaranraran... tararanraranraran...”. (Será algum tipo de estratégia para minimizar o desgaste por parte de quem liga com o mesmo propósito que eu?) Enquanto os tararans se misturavam com o “Laialáiá, quero de novo cantar...” peguei o interfone e liguei novamente para Roberto. A esperança residia no problema resolvido e, então, aquele mal-estar seria desnecessário. Nesse instante, Irene ia buscar o querosene pra acender o fogareiro e incendiava o tararan em meu ouvido. Com um fone colado em cada um dos meus ouvidos, tentei manter o controle. Minha mãe perguntou se o som me incomodava e, claro, respondi que não. Se uma barraqueira na família já estava procurando confusão, quiçá, o que poderiam fazer duas. Uma filha frustrada e uma mãe superprotetora preocupada com o desenvolvimento da atividade da cria indefesa. Que dupla!

Roberto me sussurrou que o colega foi ao grupo e pediu para baixar o som. Eu informei que nada havisa mudado e desliguei o telefone. Uma voz feminina atendeu na Sucom e, muito feliz, contei a Sâmara, de novo, a história e quando terminei, percebi que falava sozinha. O telefone estava mudo. Tentei ligar novamente e o velho e triste conhecido “No momento todos os atendentes estão ocupados. Aguarde e atenderemos dentro de alguns minutos... tarararantaranraran ...tararanraranraran...” me fechou a garganta, deixando queimar livre a cólera de incapacidade. Fantasiei, instantaneamente, ser Michael Douglas em Um dia de Fúria e com um taco de beisebol quebrei todos os autofalantes de trio elétrico do automóvel preto de placa CKG 3562. Sim! Fora o surto, eu saí para dar uma olhadela na turma e, quem sabe, ao ver minha cara de aborrecimento, eles se tocassem que estavam incomodando com o som do arrocha. Arrocha! Vi uma lágrima escorrer do meu rosto e me senti derrotada. Caminhei de volta para dentro de casa, abri a geladeira e me entreguei à lata de Skol que me olhava feliz. Três da tarde. Me joguei de novo no sofá e chorei copiosamente dessa vez. Talvez minha orientadora entendesse a minha falta de compromisso e responsabilidade por não entregar o capítulo devidamente revisado que eu precisava entregar. Eu poderia até suportar o atraso de meses na finalização do meu trabalho. Podia aguentar o calor, os dias que abdiquei da presença dos meus amigos e da série que não consegui assistir na TV em meu tempo livre. Eu podia aguentar até Irene. Podia sim. Mas arrocha, não. ARROCHA, NÃO!

Um comentário:

Anônimo disse...

Amiga,
nem tô acreditando nisso.
Eu tava aqui esperando você dizer que resolveu a problemática da coisa.
Não reconheço você vencida pelo Arrocha! Não mesmo!
Mas entendo também que não é sempre que se está disposta a resolver trilhas sonoras de 5ª.

Beijos e melhor sorte da próxima vez!